Os hotéis internacionais em Israel geralmente têm um amplo lobby com muitas mesas e cadeiras para dois ou quatro lugares. A princípio, não me pareceu muito funcional, pois não era nem uma lanchonete, muito menos um restaurante, mas uma sala de estar ampliada. Gradualmente, comecei a perceber que as mesas eram quase sempre ocupadas por casais vestidos de forma ortodoxa. Eu assisti às reuniões e logo percebi que esse costume antigo, mediado por profissionais de casamenteiro, aliás muito divertido descrito por Freud em livros como “Piadas e suas relações com o inconsciente” ou “Interpretação dos sonhos”, tinha o uso e a atualidade mais vigorosa.
Casais jovens pareciam se divertir, embora sóbrios, geralmente com uma garrafa de água mineral lateral. Eles não mostraram sinais de vergonha ou constrangimento com a situação. Mais tarde, alguém me disse que as práticas variam, mas que as mulheres têm direito a um número relativamente limitado de rejeições, após o que sua prerrogativa de escolha pode cair. O incrível aqui não é que a prática ainda exista hoje, mas que possa funcionar, no limite tênue e improvável do que podemos usar essa expressão para casamentos.
Comparei esse ritual com o nacional similar, que eu sigo diariamente no Brasil. A princípio, parecia-me inconcebível que até hoje tantos casais se formassem com tantas mediações, regras e ritos. Tudo se assemelha a casamentos organizados por famílias, com seus interesses, que remontam aos tempos pré-históricos, antes de inventar essa maravilha chamada “escolher alguém livremente baseado nesse valor supremo chamado amor”.
Mas a comparação não foi tão devastadora quanto eu previ. Pensei naqueles solitários persistentes que não podem ir ao cinema sem companhia porque se sentem em permanente assédio moral imaginário por causa da voz que diz e do dedo que aponta: “seu amante falhou”. Eu pensei que eles poderiam contratar os serviços de um casamenteiro judeu. Mas logo vi que isso seria algum tipo de prova humilhante de que eles estão “realmente” fora do circuito como “as coisas deveriam estar”.
Lembrei-me de quantos pacientes parecem ter uma narrativa condicional em mente sobre como o amor acontece. Lembrei-me dos textos de Freud sobre a psicologia da vida amorosa e como produzimos condições, negativas e positivas, para a escolha do nosso objeto de amor. Entre eles, é comum encontrar um tipo de horror com a própria idéia de que devemos agir ativamente para nos proporcionar situações em que a contingência do amor possa ocorrer. A palavra-chave aqui é geralmente “natural”.
Natural como sempre, amigos de amigos em aulas e festas ou clubes e bares. Um exame mais atento geralmente mostra que esse natural indica apenas a retenção de condições nas quais outros amores ocorreram, em outros momentos da vida em que, por exemplo, amigos não eram casados, baladas tocavam rock progressivo e não existiam. Formulários.
Apesar do aumento exponencial desse tipo de tecnologia ao aproximar os casais, ainda existem efeitos residuais da primeira geração de usuários desse tipo de tecnologia. rede social. Em seu agora clássico “Tinderellas” [1], Lígia Figueiredo e Rosane de Souza, detectaram três estilos de uso desses aplicativos:
- ELE curioso, que fala muito, mas pouco fala de si mesmo, leva tempo para se envolver, como um antropólogo que investiga outra cultura
- ELE recreativo, que procura diversão, que cria certos códigos e procedimentos para se conectar com alguém adaptado para a ocasião.
- ELE racional, que está analisando a tarefa em busca de uma opção de longo prazo, com forte intimidade e investimento de ambos os lados.
Cada perfil de uso seria combinado com um tipo de apego, seguro ou inseguro, esquivo ou ansioso, que expressaria de maneira compacta a maneira que aprenderíamos a amar quando amamos pela primeira vez, ou seja, com nossos pais e cuidadores.
Ao descobrir mais claramente o que cada um deseja (seu estilo de uso), esclarecer as condições e a escolha (o tipo de apego) e estabelecer-se com maior transparência que o outro, seus traços e qualidades “monetários, sexuais e intelectuais”, nada poderia escapar do procedimento. Seria o suficiente para repetir até encontrar a partida, esmagar e continuar a jornada.
Mas não é isso que está acontecendo. O número de pessoas afetadas por descasamentos digitais, cansado de tantas ofertas enganosas, daqueles que simplesmente não conseguem suportar a situação como está, ainda é muito grande. Talvez o procedimento esteja faltando alguns ingredientes da sabedoria judaica antiga.
No episódio “Pendure o DJ“Da série Black Mirror, um programa determina a reunião entre casais e o tempo que eles passarão juntos. Amy e Frank têm apenas doze horas, dormem juntos, mas não fazem sexo nesta primeira reunião passageira. Nada de surpreendente e notável acontece nessa cena.” Primeiro encontro”. , exceto pelo fato de que “algo” realmente aconteceu.
Depois disso, ambos têm relacionamentos mais longos e mais curtos, mais ou menos desastrosos, até que o programa os reúna. Desta vez, eles agem contra a intuição e juntos decidem não olhar quanto tempo levará essa reunião. Agora, essa decisão de “não saber” parece ser essencial para que o amor aconteça.
Talvez o que os aplicativos levam como demanda falsa esteja na ideia de que saber mais sempre aumenta nossa perspectiva de decisão. Às vezes, saber menos sobre o que você quer, sobre quem você é e o que queremos do outro abre a brecha necessária para que o amor aconteça em sua lógica de encontro e transformação.
Logo na primeira reunião entre Frank e Amy, algo quase imperceptível para o espectador acontece, mas crucial para tudo o que se seguirá: eles quebram uma regra juntos. Isso será repetido na decisão de não saber e também no que acontece com o enredo (o spoiler pára por aqui e você não saberá como termina).
Isso ajudaria a entender por que tantas pessoas têm um ódio mortal por aplicativos, como se estivessem vendendo uma promessa falsa, o que de fato seria mais em nossa interpretação e uso do que eles oferecem, ou seja, como um método de reunir essas informações. efeito iatrogênico de nos fazer acreditar que conhecer mais e mais rápido é melhor.
Talvez sejam as mesmas pessoas que amaldiçoavam o amor romântico antes de ler o manual do usuário (Goethe, Balzac, Flaubert, Stendhal, Tolstoi, Clarice Lispector, Ana Cristina César, Hilda Hist e todos os outros). Isso nos leva a formular tipos e quadros muito rapidamente, por outro, sobre nós nessa situação. Isso aumenta a pressão urgente para decidir e não “perder mais tempo”.
Uma ligeira coerção, como a exercida pela regra judaica de organização de partidas, da qual você pode escolher, mas depois de várias tentativas em que sua liberdade pode cair, parece essencial para aqueles que ainda pensam que encontrar alguém é como andar pelas vitrines das lojas ou se expor. um pedaço de carne no açougue.
Em resumo, o amor digital não se refere a um contrato, não se refere à livre escolha de bens, não se trata de gostos semelhantes, nem de “tipos” ou “características” humanos que se complementam.
Depende de nossa capacidade cada vez mais rara de suportar não conhecer e agir de acordo com seu desejo, mesmo assim.
REFERÊNCIA
[1] Figueiredo, L.B. e Souza, R.M. (2017) Tinderellas. São Paulo: Ema Livros.