Sabão e água e gel de álcool podem matar o novo coronavírus. Falar essa frase para um cientista pode iniciar uma discussão sem fim. Não por causa da eficácia comprovada dessas práticas de prevenção, mas porque, até hoje, não há consenso sobre se os vírus são seres vivos ou não.
Em geral, podemos dizer que os vírus são um agente infeccioso submicroscópico capaz de se replicar apenas nas células vivas de um organismo. É um parasita intracelular obrigatório, ou seja, depende de outro ser vivo para se reproduzir. Fora das células, os vírus não têm movimento, substância e nem podem se multiplicar.
“É uma discussão muito antiga e até hoje não há consenso na comunidade científica. Por esse motivo, às vezes são consideradas a linha divisória da vida como a conhecemos”, explica Rômulo Neris, virologista da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Janeiro e pesquisador visitante da Universidade da Califórnia, Davis (EUA).
“Eu diria que as partículas virais ficam ‘vivas’ quando parasitam essas células, seja uma bactéria, uma célula vegetal, um mamífero etc. Os vírus dependem da maquinaria celular para formar novas partículas e só então eles podem se perpetuar na natureza, como essas partículas não possuem ferramentas para permitir sua independência “, acrescenta o imunologista Sharton Antunes Coelho, membro de um grupo de trabalho para diagnosticar o SARS-CoV2, o novo coronavírus.
Precisamente por terem um processo existencial que difere do padrão tradicional de seres vivos e não-vivos, esses organismos têm intrigado a ciência desde o final do século XIX, quando o vírus do mosaico do tabaco, que infecta plantas, foi descoberto.
“Em última análise, essa definição de viver ou não viver depende do que ‘vida’ significa, seja um conjunto de processos metabólicos, a capacidade de gerar filhos ou de ter genes. Cada uma dessas definições pode e irá gerar interpretações da classificação de vírus como vivos “, reforça Neris.
Sem origem definida
Se definir a classificação de vírus entre seres vivos ou não já significa entrar em um dilema sem fim, rastrear sua origem é ainda mais misterioso.
Atualmente, existem três possibilidades para isso.
1) No começo eram RNA e DNA
A primeira hipótese diz que os vírus apareceram antes da vida como os conhecemos na Terra. O ambiente neste “mundo viral” teria a formação e degradação das estruturas de RNA e DNA o tempo todo. Essas moléculas teriam então se juntado a outras moléculas orgânicas ou inorgânicas e formado cápsulas que “empacotam” essas estruturas de RNA e DNA. Algumas dessas estruturas acabaram formando as primeiras células (protocélulas), e outras que não passaram por esse processo continuaram a existir como um “pacote” de DNA e RNA, ou seja, vírus.
2) células defeituosas
Uma segunda hipótese é chamada de Teoria da Regressão. Nele, as protocélulas teriam existido antes dos vírus, e algumas delas teriam passado pela chamada evolução redutiva, perdendo componentes e habilidades após muitas gerações. “Como resultado, essas protocélulas se tornaram cada vez mais simples, até perderem a capacidade de se multiplicar, tornando-se dependentes de outras células para se tornarem os primeiros vírus”, explica Neris.
3) cópias independentes
Finalmente, existe a hipótese de escape, que diz que os vírus podem ter surgido de genes em células capazes de copiar independentemente, sem que a célula inicie o processo por qualquer motivo. O DNA humano possui alguns elementos desses genes, chamados retrotransposons.
“Nesta hipótese, esses elementos ganharam seqüências de proteínas que permitem a formação de estruturas e evitam suas células originais”, diz Neris.
Nenhuma dessas três hipóteses foi testada até o momento.
Seqüestrador profissional
Qualquer que seja a fonte, os vírus agem da mesma maneira: sequestram células vivas e, uma vez lá dentro, usam todos os dispositivos à disposição com a intenção de se reproduzir.
Para isso, eles apresentam o conjunto de RNA e DNA de seu genoma para serem lidos e produzidos pela célula. O DNA é uma série de instruções para produzir proteínas, e o RNA é responsável por “traduzir” essas instruções para as células produzirem.
“Os vírus fazem com que a célula coloque seu próprio genoma na fila de produção e comece a produzir partes do vírus. Essas partes têm duas funções principais: gerar o esqueleto de novos vírus e instruções para montar ou gerar novos. Cópias do RNA ou do DNA do vírus para colocar dentro desses esqueletos “, explica Neris.
O destino da célula pode variar: pode morrer depois que toda a sua estrutura é usada para criar novos vírus ou se tornar “refém” indefinidamente, com o vírus proliferando sutilmente sem que a célula morra no processo. Como os vírus se destinam principalmente a se reproduzir, quanto mais a célula permanecer viva, melhor.
Uma vez em nosso corpo, o vírus está à mercê:
- A ação do sistema imunológico do hospedeiro;
- O consumo de drogas que aumentam a reação do sistema de defesa desse organismo ou mesmo que controlam o mecanismo de proliferação do vírus.
“Se um vírus que causa uma doença pode ser controlado pelo sistema imunológico, a doença é denominada autolimitada e nosso corpo pode eliminar o vírus. É o caso da dengue e do zika”, explica Neris.
Isso não acontece com outros vírus. O HIV tem uma ação mais complexa: além de usar as células para se copiar, possui um mecanismo que bloqueia a ação do sistema imunológico do nosso corpo. Para fazer isso, ele cria uma cópia do seu DNA e o integra ao DNA da célula infectada, como se fosse um “backup”.
Por mais que a terapia antirretroviral possa impedir que o HIV seja detectado na corrente sanguínea, ele já deixou uma cópia de seu DNA impressa nas células da pessoa infectada e se replicará assim que a terapia for interrompida.
O maior problema aqui é que o HIV “sequestra” um tipo específico de linfócito, células do corpo que são críticas para a imunidade. Sem tratamento, a imunidade do portador do HIV fica seriamente comprometida, pois essas células reproduzem vírus e não são mais elas próprias. Isso não apenas deixa espaço para as mais diversas infecções, mas também destrói a capacidade do organismo de reagir a condições infecciosas.
E fora do corpo?
Se os vírus dependem das células vivas para permanecerem ativas e seguirem seu calendário reprodutivo, o que acontece quando são deixadas no ambiente? Nesse caso, são inertes, desde que o ambiente não cause sua destruição.
O novo coronavírus pode persistir no ambiente por dias, dependendo da superfície em que está. Essa variação no tempo depende do estresse ao qual o vírus está sujeito.
“Aspectos importantes são a temperatura da superfície, já que as proteínas que compõem o vírus se decompõem a temperaturas muito altas, em torno de 90 ° C, e as propriedades químicas do material, interagindo com o vírus e destruindo-o ou desestabilizando-o. detergente ou sabão quebra a camada adiposa do vírus e perde sua integridade. Superfícies extremamente secas também danificam a estrutura de muitos vírus envolvidos “, diz Neris.
Alguns materiais, como o cobre, podem interagir e desestabilizar proteínas, resultando na destruição de vírus. Chamamos isso de efeito oligodinâmico, que já foi objeto de alguns estudos. Esse aspecto do cobre é usado para estruturas hospitalares, como corrimãos e maçanetas. Materiais altamente porosos também são ruins para vírus. Quanto mais poroso, menor a probabilidade de o vírus carregar.
Por que o novo coronavírus é “especial”?
Outro aspecto relevante dos vírus é que, com o tempo, eles passaram pelo processo de seleção natural. Como resultado, eles assumiram diferentes formas, tornando-os cada vez mais especializados em interagir com certos tipos de células.
Existem quatro variações de vírus:
- Icosaédrico, na forma de triângulos conectados, como um dado de 20 lados;
- Filamentosos, em forma de palha e geralmente agem nas plantas;
- Complexos, vírus que normalmente infectam bactérias e que possuem um tipo de cabeça e cauda usado para perfurar bactérias;
- Envelopes, que podem ter uma forma icosaédrica ou filamentosa, mas são envolvidos pelo envelope, uma camada de gordura.
“A maioria dos vírus animais como dengue, zika, chikungunya, Ebola e até o novo SARS-CoV2 estão envolvidos. Em geral, a forma do vírus é a maneira mais estável possível para a organização de suas proteínas externas. Isso é fundamental para reconhecer e entrar na célula hospedeira “, diz Neris.
Segundo Coelho, o que torna o novo coronavírus tão problemático são três razões básicas.
- A grande porcentagem de indivíduos assintomáticos que se comportam como vetores e acabam transmitindo a doença.
- O fato de o vírus permanecer viável por até 72 horas em superfícies, criando fontes adicionais de transmissão.
- O alto poder de contágio do vírus: estima-se que cada pessoa infectada possa infectar entre três e seis pessoas
Além disso, o novo coronavírus possui peculiaridades como a alta velocidade de replicação; é capaz de se adaptar a hospedeiros de diferentes espécies; e seu “objetivo” é entrar no sistema respiratório inferior (traquéia, brônquios e alvéolos), onde causa casos graves de pneumonia e deixa sequelas nos pulmões.
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