Este é o trabalho científico mais importante de 2020. O Pfizer/ BioNTech publicou os resultados completos dos estudos de fase 3 de sua vacina. Ao ler o trabalho, é fácil entender porque a vacina foi rapidamente aprovada em Inglaterra Somos nós Estados Unidos. O trabalho relata um cuidadoso ensaio clínico com resultados inquestionáveis. A eficácia e segurança de 95% da vacina foram comprovadas. É um daqueles artigos científicos que serão usados nas escolas de medicina para ensinar como um ensaio clínico de fase 3 pode ser realizado de forma rápida e contínua.
Isso contrasta com os resultados publicados pela AstraZeneca/ Oxford que mostram como é difícil realizar um desses estudos. Erros de dosagem, tempo entre as doses e diferenças de protocolo são relatados em locais diferentes. Apesar disso, o estudo mostrou que a vacina é segura e 62% eficaz. A AstraZeneca analisa a possibilidade de repetir parte do estudo a possibilidade de combinar seu componente ativo com o da vacina russa na esperança de melhorar os resultados. Tudo indica que a vacina, que foi Fiocruz e o governo Bolsonaro provavelmente será difícil de ser aprovado em um futuro próximo.
Mas isso não é o pior que pode acontecer. A Sanofi / GSK anunciou que a vacina que estava desenvolvendo não produzia a imunidade desejada e foi abandonada. Outra vacina, desenvolvida na Universidade de Queensland, em Austrália, também foi abandonado depois que as pessoas vacinadas começaram a testar o HIV sem estar infectadas. Falhas como essas são esperadas e outras ocorrerão nos próximos meses. Esses fatos colocam o foco do mundo científico nos resultados do Coronavac desenvolvido pela Sinovac e cujo teste de fase 3 é realizado pelo Butantan. O julgamento terminou em 24 de novembro e os resultados devem ser anunciados antes de 15 de dezembro. A qualidade do estudo coordenado pelo Butantan e os resultados obtidos vão determinar se o Coronavac funciona ou também será abandonado.
Mas vamos às boas notícias. Os ensaios de Fase 3 da Pfizer / BioNTech foram conduzidos entre 27 de julho e 14 de novembro de 2020 em 152 centros de pesquisa localizados nos EUA (130), Argentina (1), Brasil (2), África do Sul (4), Alemanha (6) e Turquia (9). No Brasil, um dos centros fica em São Paulo e é coordenado por Cristiano Zerbini, o outro pelo meu amigo Edson Moreira, infectologista e epidemiologista baiano que foi meu contemporâneo na Universidade Cornell. Ambos estão entre os principais autores da obra.
O polo Edson fica na Associação Irmã Dulce de Assistência Social, em o salvadore vem conduzindo ensaios clínicos há anos. O Brasil contribuiu com 6% dos voluntários. Esses 152 centros, coordenados e pagos pela Pfizer, recrutaram 44.820 voluntários em apenas algumas semanas. Destes 43.448 receberam injeções, das quais 21.720 receberam a vacina e 21.728 receberam placebo (uma solução de água salgada). Dos que receberam as injeções, 37.706 foram acompanhados por 2 meses, uma exigência dos órgãos reguladores que aprovam as vacinas.
Como os voluntários foram selecionados para representar todos os estratos da população e colocados no grupo placebo ou no grupo vacinado em lote, os dois grupos são praticamente iguais na representação da população. Dos voluntários, 58% têm entre 16 e 55 anos e 42% têm mais de 55 anos. Os brancos são a maioria (83%), seguidos pelos latinos (28%). Lembre-se de que muitos latinos são brancos. Foram incluídos negros (9,5%), asiáticos (4,2%) e até índios. Em outras palavras, os resultados são válidos para pessoas de ambos os sexos acima de 16 anos.
Os efeitos adversos da vacina foram analisados em 43.252 participantes. Nos primeiros dias após a injeção, cerca de 70% das pessoas relataram dor no local da injeção e cerca de 5% tiveram vermelhidão e algum inchaço. Esses números são muito menores entre aqueles que receberam o placebo (9% e 1%). Outros efeitos são fadiga, dor de cabeça e dor muscular, todos efeitos leves, esperados para uma vacina que provoca uma forte resposta imunológica. Esses sintomas desapareceram em 1 a 2 dias. O aparecimento de nódulos inchados também é esperado em 0,3% dos vacinados durante uma forte resposta imunológica. Não foram detectados mais efeitos adversos graves relacionados à vacina.
Agora o mais importante: a eficácia da vacina. A vacina, como já divulgada na imprensa, tem 95% de eficácia (esse valor está entre 90,3% e 97,6% com 95% de certeza). Os dados que levaram a esta conclusão encontram-se na figura abaixo e são tão claros que vale a pena entender a figura. No eixo horizontal está o número de dias decorridos desde que a pessoa foi vacinada. Vai de zero (dia da vacinação) a 105 dias. O eixo vertical indica a porcentagem de pessoas no grupo que recebeu o placebo ou a vacina que apresentaram sintomas para Covid-19 e tiveram resultado positivo.
Cada etapa, em cada uma das duas curvas, representa a aparência de uma pessoa com Covid-19. A linha azul representa os casos Covid-19 detectados entre as pessoas que receberam um placebo. Observe que entre todos aqueles que receberam o placebo, há uma ou duas pessoas que contraíram a doença no dia seguinte à vacinação e pessoas que contraíram a doença em dias diferentes após receberem o placebo.
O que você pode ver é que, ao longo do tempo, o número de pessoas que contraíram a doença após receberem o placebo vem aumentando constantemente, chegando a 2,4% de todos os injetores: 162 pessoas tiveram Covid-19 nos 105 dias. Obviamente, se o estudo continuar por mais alguns meses, esse número continuará a crescer à medida que o vírus se espalha entre os voluntários que receberam o placebo. Esse crescimento contrasta com o que aconteceu com as pessoas que receberam a injeção da vacina (linha vermelha).
Nos primeiros 7 dias após receber a vacina, algumas pessoas (6) contraíram Covid-19 e a linha vermelha acompanha a linha azul (é o tempo que leva para a vacina começar a funcionar). Mas daquele ponto em diante, o número de pessoas que tinham Covid-19 praticamente parou de crescer. Nos 105 dias que durou o estudo, apenas 8 pessoas contraíram Covid-19. Em outras palavras, em dois grupos idênticos de pessoas, que viveram exatamente no mesmo ambiente por 105 dias, no grupo dos que receberam placebo, 162 adoeceram. Entre os que receberam a vacina, apenas 8 adoeceram.
A eficácia da vacina é calculada de uma forma muito sofisticada, mas você pode fazer uma contagem simples dividindo 162 por 8. O resultado é 20, ou seja, as pessoas que receberam um placebo têm cerca de 20 vezes mais probabilidade de contrair a doença. A eficácia calculada é de 95%. Mas você nem precisa fazer as contas, é só olhar que a linha vermelha fica quase horizontal e a linha azul sobe constantemente com o tempo, o que indica que a vacina funciona: os vacinados não adoecem, fica quem recebe o placebo. No trabalho da AstraZeneca / Oxford há um número semelhante, mas aí a curva vermelha sobe, mais lentamente que a azul, mas sobe, indicando uma eficiência de 62%. No dia 15 de dezembro conheceremos a curva do Coronavac.
Para quem ainda não acredita no poder da ciência, é bom lembrar que a equipe de cientistas da BioNTech começou a desenvolver a vacina em 10 de janeiro de 2020, quando cientistas chineses publicaram a sequência do novo Coronavírus. Os ensaios da fase 3 começaram no dia 27 de julho e agora, no dia 10 de dezembro de 2020, exatos 11 meses depois, já temos uma vacina que comprovou sua eficácia, que é segura, que já foi aprovada e está sendo usada para vacinar a população. Todo o esforço científico deste ano resultou em muito conhecimento novo, mas também em algo extremamente útil, uma vacina capaz de salvar milhões de vidas. Você entendeu por que a ciência é importante?
MAIS INFORMAÇÕES: SEGURANÇA E EFICÁCIA DA VACINA DE mRNA COVID-19 BNT162B2. NEJM, DOI: 10.1056 / NEJMOA2034577 (2020)
* É BIÓLOGO, DOUTORADO EM BIOLOGIA CELULAR E MOLECULAR PELA UNIVERSIDADE DE CORNELL E AUTOR DA CHEGADA DO NOVO CORONAVIRUS NO BRASIL; LOTUS LEAF, MOSQUITO SNEAKER; E A LONGA MARÇO DOS GRILOS CANIBAIS