Como um dinossauro brasileiro desencadeou um movimento para descolonizar a ciência fóssil

Como um dinossauro brasileiro desencadeou um movimento para descolonizar a ciência fóssil
O paleontólogo Rodrigo Temp Muller examina um fóssil de dinossauro do período Triássico em um centro de apoio à pesquisa no Brasil.

Um paleontólogo examina um fóssil de dinossauro do período Triássico (250 a 200 milhões de anos atrás) no Brasil.Crédito: Carl de Souza/AFP via Getty

Em dezembro de 2020, um artigo na revista Pesquisa do Cretáceo enviou ondas de choque através da comunidade paleontológica1. Ele descreveu uma espécie de dinossauro que os autores chamaram de ubirajara jubatus – o primeiro dinossauro encontrado no hemisfério sul mostrando o que provavelmente foram os precursores das penas modernas. O fóssil de 110 milhões de anos havia sido coletado no Brasil décadas antes, mas nenhum paleontólogo brasileiro jamais tinha ouvido falar dele. Os autores do artigo eram da Alemanha, México e Reino Unido.

Foi o exemplo mais recente do que alguns pesquisadores agora chamam de colonialismo paleontológico, no qual cientistas de nações ricas obtêm espécimes de países de baixa e média renda sem envolver pesquisadores locais e depois armazenam os fósseis no exterior. A prática às vezes pode ser ilegal. Por exemplo, de acordo com a legislação brasileira, os fósseis do país pertencem ao Estado, embora os autores do Ubirájara papel dizem que tinham uma licença assinado por um oficial de mineração brasileiro permitindo-lhes exportar o espécime. “Até onde os autores sabem, o espécime de Ubirájara foi obtido legalmente”, diz David Martill, coautor e paleontólogo da Universidade de Portsmouth, Reino Unido.

A prática também pode privar as nações de conhecimento e patrimônio, dizem os pesquisadores. “Os fósseis são especiais para nós”, diz Allysson Pinheiro, diretor do Museu Paleontológico Plácido Cidade Nuvens em Santana do Cariri, Brasil, perto de onde U.jubatus foi encontrado. “Temos literatura, artes e ofícios e música baseados neles.”

No entanto, ao contrário dos incidentes anteriores, a publicação de Ubirájara provocou uma revolução.

Por meio da campanha #UbirajaraBelongstoBR no Twitter, pesquisadores brasileiros protestaram contra o item, que acabou sendo retirado, e pediram a devolução do fóssil. o Ubirájara O espécime está atualmente no Museu Estadual de História Natural de Karlsruhe, na Alemanha, mas as autoridades dizem que o museu está envolvido em negociações para enviá-lo de volta ao Brasil.

Fóssil de Ubirajara jubatus.

o ubirajara jubatus fóssil provocou indignação entre paleontólogos e cidadãos brasileiros.Crédito: Felipe L. Pinheiro

Ainda mais significativo, o incidente levou paleontólogos e associações paleontológicas de toda a América Latina a unir forças para acabar com a prática. O movimento crescente está até atraindo o interesse de cientistas da Mongólia e de outros países além da América Latina que são afetados pela paleontologia colonial.

Juliana Sterli, presidente da Associação Paleontológica Argentina em Buenos Aires, descreve a Ubirájara episódio como a “última gota”. “Em situações anteriores, não nos expressávamos”, diz ela.

consciência global

Um dos frutos do movimento foi a publicação de artigos de jornal analisando a extensão do colonialismo paleontológico na América Latina e em outros lugares. Em março, por exemplo, um relatóriodois revisaram décadas de artigos descrevendo fósseis do México e do Brasil. Os autores analisaram quase 200 estudos publicados entre 1990 e 2021 e descobriram que mais da metade não incluía pesquisadores locais. Dos fósseis brasileiros descritos, 88% foram armazenados fora do Brasil.

Alguns na comunidade, no entanto, contestaram as conclusões do documento. Martill diz que o artigo “é um estudo pseudocientífico com um conjunto de dados altamente selecionado”, acrescentando que ignora as práticas dos paleontólogos americanos e se concentra em pesquisadores europeus. Martill foi coautor dos artigos destacados pela pesquisa.

Juan Carlos Cisneros, paleontólogo da Universidade Federal do Piauí em Teresina, Brasil, e coautor do estudo, diz que algumas coleções de fósseis brasileiros dos EUA anteriores a 1990 foram perdidas porque o estudo se concentrou em holótipos de vertebrados. (espécimes usados ​​como referência para descrever uma espécie) estudados a partir de 1990, explica. Foi então que o Brasil aprovou um decreto exigindo que instituições internacionais que estudam fósseis no país fizessem parceria com instituições brasileiras. Cisneros acrescenta: “Parece desajeitado que pesquisadores envolvidos em práticas tão questionáveis ​​se defendam dizendo que coisas igualmente questionáveis ​​estão sendo feitas em outros países”.

No passado, quando questões de colonialismo científico eram levantadas com colegas de países ricos, os incidentes eram atribuídos a eventos anedóticos, diz ele. “Agora que isso foi publicado em uma revista científica, não há mais como ignorá-lo.”

Jeff Liston, presidente da Associação Europeia de Paleontólogos de Vertebrados, com sede em Edimburgo, Reino Unido, que estudou o comércio ilegal de fósseis na China, diz que a comunidade científica está ciente dos problemas relacionados à paleontologia colonial há algum tempo, mas o debate nos últimos anos trouxe a discussão para um público mais amplo.

Há planos para mais publicações sobre o assunto na América Latina, incluindo artigos sobre como as revistas podem ajudar a resolver o problema. As associações paleontológicas da Argentina, Brasil, Chile e México planejam enviar uma carta descrevendo como as práticas coloniais estão afetando a paleontologia na região para uma revista científica. “Um dos nossos objetivos é criar uma consciência global sobre a responsabilidade dos periódicos revisados ​​por pares na luta contra as práticas coloniais”, diz Hermínio de Araújo Júnior, presidente da Sociedade Brasileira de Paleontologia, com sede no Rio de Janeiro.

no jornal de marçodoisPor exemplo, os pesquisadores descobriram que nenhum dos estudos que revisaram relatou ter permissão para levar os fósseis para o exterior. “Um grande passo seria solicitar as autorizações correspondentes para estudar o material que estão colocando na revista”, diz Karen Moreno Fuentealba, presidente da Associação Chilena de Paleontologia, com sede em Santiago. “Certamente seria uma maneira de impor um comportamento científico adequado.”

Algumas revistas, como Paleontologia, já adotaram políticas que exigem que os autores respeitem as leis locais ao coletar e exportar amostras. “mais um foi uma das primeiras revistas a ter um conjunto muito rigoroso de diretrizes éticas em termos de apresentação de alvarás de coleta e exportação”, diz Liston. (Natureza também tem esse tipo de apólice; NaturezaA equipe de notícias da é editorialmente independente da equipe de sua revista.)

Uma aliança latino-americana

Pesquisadores latino-americanos também aumentaram a conscientização global sobre a paleontologia colonial em conferências internacionais. No último dezembro, Cisneros apresentou investigação no terceiro Congresso Paleontológico Virtual anual, no qual ele e sua equipe analisaram o impacto da campanha #UbirajaraBelongstoBR. A hashtag se tornou um trending topic no Twitter no Brasil entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, após a Pesquisa do Cretáceo o artigo foi publicado.

“Não apenas os comunicadores de ciência estiveram envolvidos na conversa, mas também os influenciadores de jogos, artistas e a mídia prestaram muita atenção a ela”, diz Aline Ghilardi, paleontóloga da Universidade Federal do Rio Grande do Norte em Natal, Brasil. criou a hashtag.

Liston aponta esses resultados positivos, mas diz que também houve resultados negativos. Membros do público ameaçaram os cientistas e instituições envolvidas na Ubirájara investigar. A conta do Instagram do museu de Karlsruhe gerou mais de 10.000 comentários, muitos deles negativos, e foi deletada em 2021.

Em julho, um painel discutirá o colonialismo científico no Congresso Latino-Americano Virtual de Paleontologia de Vertebrados. O objetivo, segundo Cisneros, é promover uma verdadeira cooperação entre os paleontólogos. “Não queremos que pesquisadores de outros países parem de trabalhar aqui. O que esperamos é que as alianças sejam mais justas e recíprocas. E que nossas leis sejam respeitadas, assim como respeitamos as leis de outros países.”

Paleontólogos trabalham para preservar esqueletos de mamutes encontrados durante uma escavação recente em Zumpango, no México.

Paleontólogos no México trabalham para preservar esqueletos de mamutes encontrados durante uma escavação em 2020.Crédito: Rodrigo Arangua/AFP via Getty

Martill diz que não tem problemas em cooperar com os investigadores locais, mas tem dúvidas sobre até onde o movimento irá para verificar o campo. “Deve-se esperar [collaborate with local partners] quando, digamos, um fóssil brasileiro está em uma coleção alemã há muitos anos? ele pergunta, além de se perguntar se procurar especialistas simplesmente para adicionar colaboradores locais pode levar ao tokenismo. “Acho que isso deve ser feito pelos autores que fazem ciência para decidir quem é um autor.”

É importante reconhecer que os padrões éticos de hoje são diferentes dos do passado, mesmo na América Latina, diz Elizabeth Chacón Baca, presidente da Sociedade Mexicana de Paleontologia, com sede em San Nicolás de los Garza. No México, por exemplo, líderes políticos ou acadêmicos costumavam oferecer fósseis como presentes a seus pares internacionais. “O interesse científico deve prevalecer”, diz ela. “Devemos proteger e defender [our heritage]mas sempre com um tom de diálogo aberto”.

efeitos cascata

Os paleontólogos latino-americanos esperam que seus esforços tenham um impacto além de seus países. De acordo com um estudo publicado em dezembro passado por Ghilardi et al.3, os países mais afetados pela ‘ciência de pára-quedas’ – publicações que não mencionam a colaboração local – são a República Dominicana, Mianmar e Namíbia. Nos dois primeiros, em particular, pesquisadores estrangeiros se interessaram pelas inclusões fósseis nos depósitos de âmbar.

O colonialismo paleontológico “costumava ser uma discussão entre amigos e colegas entre duas sessões de uma conferência”, diz Devapriya Chattopadhyay, paleontólogo do Instituto Indiano de Educação e Pesquisa Científica em Pune e coautor do estudo. Agora, “está recebendo muita atenção merecida.”

“Estou muito animado com todo esse movimento, especialmente no Brasil”, diz Bolortsetseg Minjin, fundador e diretor do Instituto Mongol para o Estudo dos Dinossauros em Nova York. Ela ajudou a repatriar fósseis de dinossauros retirados ilegalmente da Mongólia e vê paralelos entre seus esforços e a campanha para repatriar os Ubirájara dinossauro.

Minjin defende fortemente que os fósseis permaneçam em seus locais de origem. “Na Mongólia, os fósseis estão fora do país nos últimos 100 anos”, diz ele. “Agora estamos diante de um problema: como encontrar a próxima geração de cientistas?” Quando as crianças não crescem vendo fósseis como parte de sua herança e não são expostas ao conhecimento que as excita, diz ele, há pouca motivação para se tornarem cientistas.

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