PARA CEM ANOS Neste fim de semana, um grupo de jovens artistas e escritores organizou o que chamaram de Semana de Arte Moderna no grande novo teatro municipal de São Paulo. Na verdade, durou apenas três noites. Incluiu uma exposição de pintura modernista, palestras, recitais de poesia e música de Heitor Villa-Lobos, que se tornaria o compositor mais conhecido do Brasil. Desde então, passou a ser visto como o momento fundador da cultura artística moderna brasileira. Seu centenário trouxe tanto comemoração quanto algumas críticas. A tradição cultural que representa está sob ataque de Jair Bolsonaro, o presidente populista do Brasil.
O evento aconteceu em São Paulo, então uma cidade fronteiriça em rápida industrialização que começava a rivalizar com o Rio de Janeiro, a capital da época, sede do estabelecimento cultural sério. Os modernistas brasileiros tinham suas contradições. Os pretensos revolucionários também eram dândis, descendentes da aristocracia cafeeira e próximos da oligarquia política que governava São Paulo e o Brasil. Ainda assim, eles eram disruptores.
A semana “foi uma declaração de independência cultural, de que não somos apenas uma cópia desajeitada de outra coisa”, diz Eduardo Giannetti, filósofo brasileiro. Os objetivos dos modernistas foram posteriormente formalizados em um Manifesto Antropófago (Manifesto Canibal), escrito por um dos poetas, Oswald de Andrade. Este buscou abordar o dilema de como ser um artista moderno brasileiro quando o modernismo era uma importação europeia. A resposta: “Absorção do santo inimigo. Para transformá-lo em um totem. Em outras palavras, os brasileiros não iriam simplesmente reproduzir outros modelos, mas sim digeri-los e transformá-los em algo próprio. O grupo abraçou uma identidade nacional que, pelo menos em teoria, incluía negros e indígenas brasileiros e suas crenças, e fauna e flora tropicais.
Era um nacionalismo cultural, mas aberto, cosmopolita e não xenófobo. Isso foi importante. Em toda a América Latina, escritores e artistas modernistas forjavam novas identidades nacionais. À medida que a inovadora década de 1920 degenerou nos conflitos ideológicos da década de 1930, alguns abraçariam o comunismo e outros o fascismo crioulo em suas muitas variantes. Os modernistas brasileiros se radicalizariam politicamente e também seriam cooptados por Getúlio Vargas, o construtor da nação do Brasil, que governou durante grande parte de 1930 a 1954, alternadamente como autocrata e democrata.
No entanto, a tradição modernista brasileira mostrou-se extraordinariamente fértil. Incluiu Tarsila do Amaral, cuja pintura misturou cubismo, surrealismo e mitos brasileiros. Oscar Niemeyer, arquiteto, pegou os retângulos funcionais de Le Corbusier e acrescentou curvas brasileiras. As décadas de 1950 e 1960 trouxeram Bossa novauma fusão de jazz americano e samba brasileiro, e novo cinema, que se valeu das técnicas do cinema neorrealista italiano para esclarecer o atraso sociopolítico do Brasil. Um grupo solto de poetas e artistas conceituais, incluindo Hélio Oiticica e Lygia Clark, implantou a abstração e a performance art. Caetano Veloso e Gilberto Gil se inspiraram no pop britânico para criar música de protesto contra a ditadura militar que tomou o poder em 1964.
Alguns no Brasil acham que a semana de 1922 é superestimada. Ruy Castro, escritor que talvez não por acaso mora no Rio, afirma que foi a ditadura que, no 50º aniversário do evento, o institucionalizou como lenda nacional. Alguns artistas negros e indígenas afirmam que ele tem pouco a dizer a eles. No entanto, muitos brasileiros ainda o veem como uma inspiração. Em 50 anos “Espero que seja lembrado como um episódio da transformação do Brasil em um país moderno”, diz Valéria Piccoli, curadora-chefe do museu de arte Pinacoteca de São Paulo.
Por enquanto, a cultura artística brasileira está na defensiva. O governo de Bolsonaro é de “sufocação cultural”, argumenta Piccoli. O Ministério da Cultura tenta impor “uma visão conservadora, religiosa, reducionista”, denuncia. Uma das sete pessoas que em três anos serviram como secretários de cultura proclamou: “A arte brasileira na próxima década será heróica e nacional”. O proprietário, ator de novela, retirou verbas públicas de locais que exigem vacinação para entrar. E o governo cortou isenções fiscais para patrocínio cultural privado, o que reduziu o orçamento da Pinacoteca em 20%. No entanto, apesar dos gritos reacionários de Bolsonaro, a arte visual e a música brasileira se tornaram parte do mainstream global. Essa talvez seja a melhor homenagem aos pioneiros de 1922.
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Este artigo apareceu na seção Américas da edição impressa com o título “A semana que mudou uma cultura”.