Reflexões sobre o dia em que uma multidão assaltou a democracia no Brasil

Fonte da foto: TV BrasilGov – CC POR 3.0

As imagens dos violentos ataques de 8 de janeiro contra prédios do governo em Brasília foram veiculadas pela mídia internacional e repercutem até hoje. Vestindo as cores da bandeira nacional e o querida seleção brasileira de futebol, a turba de simpatizantes do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, agrediu e destruiu o Supremo Tribunal Federal, o prédio do Congresso Nacional e o Palácio Presidencial do Planalto, instituições que compõem a Praça dos Três Poderes. O objetivo era rejeitar a eleição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os paralelos com o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos há dois anos são evidentes.

Muitos analistas políticos brasileiros não ficaram surpresos. “Especialistas políticos brasileiros esperavam que isso acontecesse desde o ano passado. O episódio mostra como um pequeno grupo de apoiadores de Bolsonaro não respeita os valores democráticos do país”, disse o historiador e jornalista brasileiro. Lucas de Souza Martins em uma entrevista recente com o Programa das Américas.

Martins, PhD. O candidato da Temple University, na Filadélfia, em Relações América Latina-Estados Unidos, lembrou que, em 2018, quando o então candidato Fernando Haddad perdeu para Bolsonaro, “não havia um único apoiador do Partido dos Trabalhadores que incentivasse uma ação como a que foi tomada por quem perdeu em 2022. De certa forma, o presidente Bolsonaro deu voz a um grupo de ativistas que sempre esteve presente no cenário político brasileiro; no entanto, eles não acreditavam que poderiam continuar com sua agenda até que o ex-capitão do Exército se tornasse presidente.

Rafael Tsavko Garcia, jornalista brasileiro e Ph.D. em Direitos Humanos pela Universidade de Deusto, afirmou: “A extrema direita tem demonstrado sua força nas ruas, além das urnas e na internet. E revelou a profunda conivência das forças de segurança e políticos em cargos relevantes com o fascismo. As instituições reagiram rapidamente, mas mostraram-se vulneráveis”.

Garcia vê isso como uma oportunidade de enviar uma mensagem clara para aqueles que atacam a democracia brasileira. Ele observou a necessidade de “buscar uma punição rápida e severa para os responsáveis” como um impedimento para futuros ataques às instituições democráticas e ao estado de direito. Ele acrescentou que a acusação deve incluir não apenas aqueles que invadiram os prédios, mas também os financiadores e líderes militares por trás da tentativa de golpe.

“Esta pode ser uma oportunidade para reformar as Forças Armadas, para acabar com a obsoleta justiça militar, mas tenho dúvidas de que o governo aproveite a oportunidade”, disse Garcia.

No entanto, há um obstáculo: o governo brasileiro nunca aprovou leis ou realizou julgamentos para responsabilizar os militares por suas ações durante a ditadura civil-militar (1964-1985), como fizeram a Argentina e outros países latino-americanos. García está cético quanto à possibilidade de novas ações para processar os crimes de 8 de janeiro, quando os apoiadores de Bolsonaro apoiaram abertamente uma golpe de Estado instalar outra ditadura militar.

Garcia apontou as semelhanças entre os ataques ao Capitólio dos Estados Unidos e os prédios do governo em Brasília. “O link é direto. Os contatos entre a extrema direita norte-americana e brasileira são constantes, não apenas entre lideranças através de Steve Bannon, mas também entre militantes de diversos portes dentro do movimento pró-Bolsonaro. O que acontece nos EUA é copiado no Brasil e a invasão do Capitólio foi comemorada pela extrema direita no Brasil. Eles certamente aprenderam e replicaram, à sua maneira.”

Martins vê outras semelhanças ao comparar com a extrema-direita golpe de Estado tentativas em ambas as nações: ambas envolveram grupos minoritários que não aceitam os resultados das eleições presidenciais e lançam acusações de fraude eleitoral com base em falsas narrativas espalhadas por plataformas de mídia social.

“Foi Bannon quem aconselhou Bolsonaro a contestar o resultado eleitoral e incentivou bolsonaristas assaltar a sede dos três poderes em 8 de janeiro”, disse Garcia. “Ele desempenhou um papel importante na formação da aliança entre Trump e Bolsonaro e na troca de táticas de mídia de guerrilha. Há quem tente reduzir seu papel, colocando-o apenas como uma figura da mídia que sabe aproveitar o momento, mas o vejo como fundamental para diminuir a distância entre os ex-presidentes dos Estados Unidos e do Brasil”, destacou García .

Martins apontou outra semelhança entre os governos Trump e Bolsonaro: o nepotismo e a corrupção que decorrem do envolvimento próximo de familiares em seus governos. “Nunca soubemos que a filha da ex-presidente Dilma Rousseff ou os filhos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso lidavam diretamente com assuntos ministeriais. O mesmo com os Estados Unidos. Mesmo os membros da família Bush não necessariamente trouxeram outros parentes para suas próprias carreiras políticas.”

O ataque brasileiro terminou com a destruição de três prédios institucionais e pelo menos 1.406 pessoas presas. Quando perguntado se o fracasso do bang em 8 de janeiro e a rápida resposta do governo impedirá novos eventos violentos no Brasil, Martins citou o custo para os manifestantes de extrema-direita, não apenas em tempo de prisão, mas também em poder e influência política: “Os responsáveis ​​​​por esses ataques, conheço tal estratégia não vale a pena. Eleitores moderados tendem a votar contra a direita quando veem situações como essa. E eleitores de extrema-direita sabem que não têm apoio institucional ou popular suficiente para instalar um bang pela força É por isso que, mais uma vez, o ex-presidente Donald Trump prepara sua candidatura para as eleições presidenciais de 2024, enquanto o partido do ex-presidente Jair Bolsonaro prepara uma nova candidatura para 2026. Acho que aprenderam a lição: é preciso ganhar votos para voltar à Casa Branca ou ao Palácio do Planalto”.

Garcia tem menos certeza. “É impossível prever se haverá novas manifestações violentas”, disse ele, observando a necessidade de monitorar a extrema-direita, pois os extremistas podem estar planejando novos planos desestabilizadores, embora não na mesma escala do ataque a Brasília. Ao ser questionado sobre como o Brasil poderia monitorar as forças extremistas e suas ações, Garcia explicou: “Existem várias formas de fazer isso, mas principalmente através da inteligência, usando a ABIN (Serviço Secreto Brasileiro), inteligência do exército e talvez criando um grupo específico para monitorar tais atividades ligadas ao governo e à justiça, mas também com a ajuda de gigantes da tecnologia. Aliás, o STF tem vários acordos com big tech, principalmente no período eleitoral, para lidar com notícias falsas, por meio da moderação de redes sociais, eliminação de perfis etc.

Uma virada amigável na política externa brasileira

O ataque a prédios do governo revelou a extrema direita no Brasil democrático e também marcou a cerimônia de encerramento do governo de Bolsonaro, que será lembrado por sua ideologia de extrema direita e tendências violentas.

A presidência de Bolsonaro também criou uma mudança profunda na política externa. O país se distanciou de “tudo o que representou historicamente”, segundo García. Na gestão anterior de Lula, o Brasil participou ativamente da integração regional e mediou assuntos de importância regional e internacional. De líder na América do Sul, encolheu a ponto de se tornar ‘tóxico’ durante o governo Bolsonaro.

Bolsonaro implementou “uma diplomacia ideológica que se distanciou de tudo o que o país representou historicamente. Fez o Brasil perder seu protagonismo em assuntos de grande importância, para se tornar um pária. De um país admirado e procurado por mediar questões de relevância internacional, o Brasil se tornou tóxico”.

O desdém de Bolsonaro pelos direitos humanos, igualdade social e preservação da floresta amazônica afastou outros países do Brasil. Martins observou que, sob seu governo, o Brasil foi a última democracia do mundo a reconhecer a vitória do presidente dos EUA, Joe Biden, sobre Trump, em 2020. Bolsonaro fez alianças com ideólogos de extrema-direita, como Viktor Orbán da Hungria e da Argentina Maurício Macrienquanto cancelar a reunião em 2019 com Ministro das Relações Exteriores da França, Jean-Yves Le Drian devido a “uma nomeação de cabeleireiro”, que prejudicou a conclusão de um possível acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Para o historiador, esses acontecimentos simbolizam o triste legado da política externa dos tempos de Bolsonaro.

A liderança de Lula levará a política externa brasileira de volta ao tempo em que ela tinha voz em fóruns internacionais relevantes?

“No mínimo, uma volta ao tempo em que o país liderava e participava de importantes discussões internacionais”, previu Garcia. “Sem dúvida, o mundo ficou mais complexo, as alianças mais complicadas de manter e forjar, mas Lula pode e deve ter um papel importante (graças a Marina Silva) nos debates sobre meio ambiente e aquecimento global. Claro que o Partido dos Trabalhadores (PT) ainda mantém posições lamentáveis ​​em relação a aliados na América Latina, ditaduras como Nicarágua e Venezuela, mas, em geral, são questões menos relevantes no panorama geral das discussões mundiais.

Martins acrescentou que as relações entre os Estados Unidos e o Brasil devem melhorar. “Eles serão absolutamente melhores do que a relação anterior entre Biden e Bolsonaro. Com Lula no cargo, os dois presidentes compartilham valores semelhantes no que diz respeito à importância das instituições democráticas e sua defesa. O presidente dos Estados Unidos foi o primeiro chefe de Estado internacional a cumprimentar Lula após sua eleição. Isso significa muito em termos de interesse dos Estados Unidos em Brasília.”

A melhoria das relações com os Estados Unidos pode levar a progressos em algumas áreas importantes. “Do lado brasileiro, Brasília deve continuar a demonstrar seu compromisso com a preservação da floresta amazônica e o desenvolvimento de estratégias de energia verde. Há espaço para uma parceria benéfica entre os dois países nesta matéria. Além disso, o Brasil precisa fazer sua lição de casa em relação à modernização de sua economia e à estabilidade do sistema político. O investimento estrangeiro tende a buscar nações estáveis ​​e com ambiente favorável aos negócios”, disse Martins.

“Quando se trata do papel de Washington, trata-se de reconhecer a liderança do Brasil na região sul-americana e respeitar (e estabelecer políticas não coercitivas em relação a) as posições do governo do presidente Lula no cenário internacional, como sua visão de o conflito Rússia-Ucrânia, a crise política na Venezuela e a relação com a China”, continuou.

O governo Bolsonaro deixou animosidade, dentro do país e nas relações exteriores. Nos próximos anos, o Brasil lançará uma nova postura, visando ser mais respeitado no exterior como mediador e pacificador.

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