Para Finn Diderichsen, criador do modelo de determinantes sociais da saúde que OMS inspirado (Organização Mundial da Saúde), uma diferença básica do Brasil para a Europa, especialmente nos países ao norte do continente, é que as pessoas têm maior confiança em seus governos e cientistas.
O pesquisador e professor aposentado do Instituto Karolinska (Suécia) e da Universidade de Copenhague (Dinamarca), disse em entrevista à Inclinação, que países que demoraram muito tempo para agir contra a epidemia, como Suécia e Inglaterra, hoje têm taxas de mortalidade de cinco a seis vezes mais altas do que outros da região.
Casado com um médico de saúde brasileiro, o epidemiologista dinamarquês de 72 anos vive em João Pessoa há quatro anos. Em seu país de origem, ele liderou uma investigação que investigou como os problemas de saúde pública interagem com diferentes condições sociais nas populações.
A experiência no Brasil permitiu ver que o país mais uma vez paga o preço da desigualdade social com vidas, como aconteceu na epidemia do vírus Zika associada à microcefalia entre 2015 e 2016. “Nunca houve um foco nas desigualdades, moradia e condições sanitárias. Desta vez é a mesma coisa “, critica.
Inclinação – Você poderia explicar como esse modelo adotado pela Organização Mundial da Saúde dos determinantes sociais em saúde funciona e como ele pode ser aplicado no caso da covid-19?
Finn Diderichsen – O modelo distingue três mecanismos que contribuem para as desigualdades sociais em saúde. No primeiro, diferentes classes sociais são expostas diferencialmente ao vírus: profissionais de saúde, transporte, produção e distribuição de alimentos são mais expostos, enquanto em outros é possível trabalhar em isolamento social.
O segundo é a vulnerabilidade diferencial. Quando expostas ao vírus, a maioria das pessoas não fica doente, mas algumas ficam; depende da imunidade, que por sua vez depende de uma infecção ou vacinação anterior, se houver. Existem outros fatores que a influenciam, como obesidade e estresse, e ambos são mais comuns entre os pobres, no Brasil e em outros lugares.
O terceiro é sobre consequências diferenciais. Pessoas com distúrbios cardiovasculares, pulmonares, obesidade e diabetes correm um risco maior de desenvolver condições clínicas graves e morte. Todos esses resultados graves e prejudiciais são mais prevalentes entre pessoas pobres e trabalhadores essenciais expostos a uma carga viral mais alta.
Inclinação – Como a Dinamarca lidou com esse problema de saúde e quais padrões poderiam ser implementados em outros países?
Finn Diderichsen – Dinamarca, Noruega e Finlândia tiveram um bloqueio sanitário rigoroso desde meados de março; agora, quando a incidência é menor, abre de maneira controlada. A Suécia e a Inglaterra adotaram uma abordagem mais aberta, abrindo escolas e restaurantes e permitindo visitas a casas de repouso. Até agora, as taxas de mortalidade na Inglaterra são cinco, seis vezes maiores que na Dinamarca e na Noruega, e na Suécia é quatro vezes maior.
Há uma concentração muito forte de mortes em casas de repouso que são mais frágeis. Tanto a Inglaterra quanto a Suécia tiveram um longo período em que as casas de repouso foram expostas e não estavam preparadas para proteger seus reclusos.
Inclinação – Como podemos explicar as diferenças de medidas lá?
Finn Diderichsen – A política da Dinamarca e de outros países europeus baseia-se em um nível mais alto de confiança entre a população e os setores públicos e entre políticos e cientistas. A pandemia de covid-19 mostrou que essa confiança era ainda maior do que estamos acostumados. Mas havia também um zumbido constante com políticos populistas que tentavam criar contradições dentro das elites, entre as pessoas, e minando a confiança na ciência.
Inclinação – No Brasil, você acha que a desigualdade social contribuiu para a disseminação do vírus?
Finn Diderichsen – Sim. Em termos de exposição ao vírus, as consequências para a vulnerabilidade e a saúde são muito desiguais. É semelhante ao que aconteceu recentemente com outro vírus, o do zika, que teve um forte impacto em algumas cidades do nordeste do Brasil.
Inclinação – Como o modelo que você desenvolveu nos ajuda neste momento de crise de saúde?
Finn Diderichsen – Bem, o modelo mencionado pode ser útil para entender os mecanismos e identificar os pontos de entrada das políticas públicas. Hoje estou aposentado e não estou executando nenhum projeto específico, mas estou monitorando sua implementação em alguns países.
Inclinação – Você acha que o covid-19 continuará causando muitos problemas à nossa sociedade? Quais regiões e desafios você considera mais relevantes no momento?
Finn Diderichsen – Uma doença como Covid-19, como muitas outras doenças, tende a exacerbar as desigualdades sociais em diferentes sociedades. Estados nórdicos de bem-estar social, como Dinamarca e Suécia, apresentam diferenças econômicas relativamente pequenas, mas ainda apresentam grandes desigualdades na saúde. A experiência secreta de 19 anos pode representar uma oportunidade de reforma para esses países mobilizarem a sociedade para reduzir essas desigualdades.
Inclinação – Como você acha que devemos lidar com o coronavírus enquanto não há vacina? Os países acharão mais difícil lidar com esse novo normal?
Finn Diderichsen – As sociedades aprenderam a conviver com muitos vírus que não possuem uma vacina eficaz ou que estão disponíveis em todo o mundo, como HIV, zika, dengue, etc. No caso da covid-19, a comorbidade com obesidade, diabetes e doenças cardíacas pode indicar a necessidade de ser mais ativo na luta contra a indústria de alimentos. Acrescento ainda que o Brasil tem uma necessidade urgente de enfrentar as desigualdades econômicas e uma política decente de habitação e saneamento.
Inclinação – No caso do zika, podemos dizer que o Brasil não fez a lição de casa?
Finn Diderichsen – Para o zika, a resposta política brasileira foi uma guerra contra mosquitos com inseticidas e pesquisa biomédica. Mas nunca houve uma decisão de abordar desigualdades, falta de moradia e condições sanitárias. É o mesmo desta vez. A enorme desigualdade social e as razões para a alta prevalência de comorbidades na população não são discutidas.
Veja, por exemplo, as desigualdades no Brasil foram reduzidas por muitos anos entre 2000 e 2015, por meio de programas focais de transferência de renda, mas a perda de direitos e renda na classe trabalhadora está aumentando novamente. E agora são os mais altos em comparação com qualquer outro país, entre os democratas, segundo o pesquisador Thomas Piketty.
Inclinação – Os países mais pobres e desiguais viveram sob maior risco?
Finn Diderichsen – Sim, acho correto dizer que países muito desiguais são mais vulneráveis aos efeitos do vírus na saúde, na indústria de fast food e em outros consumos prejudiciais.