O Zoológico de Brasília costuma se preocupar com animais doentes descobertos nas ruas da cidade em que está sediado. Esta relação em mudança entre a expansão urbana e o mundo natural é o centro das atenções no documentário de Ana Vaz. É noite na América (é noite na América). O uso de filmes 16mm vencidos acentua o estado precário em que esses animais vivem e, através de sua própria forma, o filme busca reequilibrar as hierarquias humano/animal.
Uma vez vencido, o filme de celulóide tende a ser indesejável, pois não é comercialmente viável. A granulação torna-se maior e mais suave, a exposição pisca de forma inconsistente e as cores mudam de matiz. Não é diferente de como um corpo lida com uma infecção. É como se o filme estivesse respirando pesadamente enquanto tenta segurar cada quadro. Os animais que Vaz observa ocupam uma área cinzenta semelhante, forçados a se adaptar à vida da cidade em uma região que já foi destinada a eles, muitas vezes contraindo cinomose no processo.
É incomum que tantos animais apareçam nas ruas de Brasília, ou é a expansão urbana que toma conta daquele ambiente a verdadeira intrusão? Ao longo do filme, telefonemas e depoimentos em áudio detalham a variedade de maneiras pelas quais os animais chegam aos cuidados do zoológico, muitas vezes transmitidos com descrença. Essas anedotas fazem as situações parecerem sensacionais, mas sua frequência ilustra a magnitude do problema. O restante do áudio do filme está repleto de ruídos de animais, como se estivessem conversando com humanos ou fazendo uma ligação e respondendo.
Vaz oferece uma variedade de formas alternativas de visualização. Através da névoa do filme vencido, os passeios noturnos se transformam em nebulosas borradas. Em uma sequência, um mamífero é capturado em close-ups em movimento lento que traçam o pelo, os olhos e a boca do animal, e o grão de cor azul o torna uma superfície visualmente tátil. Essas imagens parecem familiares, mas isso é um ponto de vista humano ou de um animal perdido em Brasília?
O cinema há muito imbuiu a noite com um senso de mística. Nos dias anteriores ao filme colorido, o celulóide era tingido de azul para marcar as cenas noturnas. Isso perdurou na era da cor por décadas, com filtros e produtos químicos usados como parte do processo dia-a-noite, uma maneira de forjar uma noite perfeitamente controlada. é noite na América aponta para essa história em sua sequência de abertura, uma série de planos panorâmicos do horizonte de Brasília banhado em azul profundo. À medida que as tomadas aceleram junto com uma paisagem sonora que funde os ruídos da cidade e os chamados dos animais, os prédios se desfocam, transformando a cidade em um lugar que não existe. Aqui está outra forma alternativa de ver, pois os aviões imitam o voo de um pássaro desorientado.
é noite na América dá às formas liminares um protagonismo que normalmente não lhes é concedido. O título incorpora isso. A palavra “América” é frequentemente associada apenas aos Estados Unidos, com vista para o Hemisfério Ocidental em geral. Existem perspectivas alternativas que oferecem maneiras de olhar mais profundamente.
É noite na América estreias no Festival Internacional de Cinema de Locarno (a partir de agora até 13 de agosto em Locarno), e também jogará no Festival Documentário Cidade Aberta (de 7 a 13 de setembro em Londres).