RIO DE JANEIRO, BRASIL – Um país onde reinam a ciência e a paz. Hoje, parece difícil imaginar que tal lugar exista no mundo. Mas tem. E está localizado no ponto mais ao sul da Terra.
A Antártida é uma entidade geopolítica única no mundo. Em 1º de dezembro de 1959, 12 países assinaram o Tratado da Antártida. O documento pôs fim às disputas que existiam sobre porções de terra neste vasto continente. Abriu o caminho para a exploração científica livre da região por meio da cooperação internacional pacífica.
O Brasil assinou o tratado pela primeira vez em 1975, e em 1983 tornou-se um partido consultivo com voz e voto nas decisões que afetam o presente e o futuro do continente e seus imensos recursos naturais. De acordo com o tratado, para se tornar membro consultivo, o país deve promover determinados tipos de pesquisa na região.
Assim, atualmente o Brasil faz parte de um seleto grupo de 29 países que mantêm estações científicas na Antártica e podem determinar o rumo de todas as atividades relacionadas à exploração da região.
E essa história começou exatamente em janeiro de 1982, há exatos 40 anos, quando o governo brasileiro criou o Programa Antártico (Proantar) e trouxe os primeiros cientistas ao continente a bordo do navio oceanográfico W. Besnard.
“Esse projeto começou com o governo Geisel em 1975, com a adesão do Brasil ao Tratado da Antártida, e continuou na década de 1980 com a inauguração da estação científica, e depois passou por todos os governos do período democrático até hoje.
Certamente é uma das ações governamentais de maior sucesso no país, diferentemente dos projetos nacionais descontínuos a que estamos acostumados”, disse Paulo Câmara, professor do Instituto de Ciências Biológicas da Universidade de Brasília (UnB) e primeiro coordenador científico do a Estação Antártica Comandante Ferraz (EACF), sede do Brasil no continente gelado.
Câmara esteve na emissora de outubro a dezembro do ano passado e foi um dos primeiros cientistas brasileiros a entrar na Antártica após quase dois anos de paralisia devido à pandemia de Covid 19.
Essa interrupção das pesquisas, que afetou praticamente todos os países do continente, impediu o Brasil de inaugurar os modernos laboratórios científicos construídos para a nova Estação Comandante Ferraz.
A estação, fundada em 1984, sofreu um grande incêndio em 2012. A tragédia matou dois militares e 70% das instalações foram perdidas. O governo federal investiu cerca de 100 milhões de dólares para a reconstrução e a unidade recebeu os equipamentos mais modernos do mundo.
A base completa foi entregue no início de 2020, mas não houve tempo para retomar os projetos científicos porque cerca de dois meses depois foi declarada a emergência de saúde global causada pelo novo coronavírus.
O retorno dos pesquisadores ao continente congelado foi logisticamente diferente de antes. Devido às limitações da pandemia, o tempo de permanência foi estendido de aproximadamente um mês para aproximadamente três meses e agora é realizado em duas etapas durante o ano, em vez de seis.
Além disso, os cientistas deveriam permanecer a bordo do navio de apoio oceanográfico da Marinha, o Ary Rongel, por 10 dias para manter a quarentena e passar por testes de Covid-19. Pessoas com doenças concomitantes não podiam viajar.
O tempo de viagem também foi estendido. A rota anterior era por Punta Arenas, no extremo sul do Chile. Até então, os pesquisadores viajavam de avião. Eles então embarcariam em um navio para cruzar o tempestuoso Estreito de Drake até a Península Antártica ou tomar outro voo direto para o continente sul.
Como o Chile estava fechado, a viagem foi feita de barco do Rio de Janeiro direto para a Antártica, viagem que durou cerca de 20 dias em alto mar.
ESTRUTURA DE PONTA
Com uma área de 4.500 metros quadrados, a nova estação tem capacidade para 64 pessoas. O novo centro de pesquisa brasileiro na Antártica conta com 17 laboratórios de última geração.
Os quartos da base, com duas camas e banheiros privativos, oferecem aos pesquisadores e militares muito mais comodidades do que nunca.
A estação conta ainda com acesso à Internet 4G, sala de vídeo, salas de reuniões, academia, cozinha e ambulância para emergências.
“As instalações são impressionantes. É um nível de conforto que você não tinha aqui antes que nos permite processar os dados que coletamos aqui e ter uma sensação de bem-estar garantida. E como tudo ainda é novo, é um grande prazer estar entre o primeiro grupo de pesquisadores a usar tudo isso para o seu trabalho.
Esses subsídios e o propósito de estar aqui e fazer ciência fazem tudo parecer o sonho de um pesquisador”, diz Dafne Anjos, aluna do décimo semestre de ciências biológicas da UnB que trabalha na Estação Comandante Ferraz desde novembro de 2021 e faz parte do do primeiro grupo a retomar a investigação.
Dafne Anjos, que se dedica a pesquisar musgos antárticos, ficará na base até pelo menos fevereiro para recolher amostras e analisar a sua composição.
Entre as unidades recentemente reativadas está a estação meteorológica do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), apelidada de “Meteoro”, que faz medições automáticas diretamente da base brasileira na Antártida.
Outra unidade de pesquisa que retomou as operações é o módulo Very Low Frequency (VLF), que realiza estudos de propagação eletromagnética na ionosfera (parte superior da atmosfera terrestre).
A partir daí, os cientistas conseguiram rastrear o eclipse solar total em dezembro passado. Esse fenômeno, que ocorre quando o Sol, a Terra e a Lua estão completamente alinhados, só podia ser visto em sua totalidade da Antártida.
Portas corta-fogo foram instaladas em todas as unidades da estação e foram instalados detectores de fumaça e alarmes de incêndio. Nas salas de máquinas e geradores, as paredes são feitas de um material particularmente resistente.
Em caso de incêndio, eles podem resistir ao fogo por duas horas e evitar que ele se espalhe para outros lugares antes da chegada dos bombeiros. A estação também possui uma usina eólica que aproveita os fortes ventos antárticos.
Painéis também foram instalados na base para captar a energia solar, que vai gerar eletricidade, principalmente no verão, quando o sol da Antártida brilha mais de 20 horas por dia.
“Aprendemos muito durante esse processo, por isso hoje temos uma estação altamente tecnológica e segura, com um conjunto de recursos que nos permitirá realizar pesquisas científicas de ponta na Antártida”, destaca o capitão Marcelo Gomes, subsecretário do Proantar.
A estação de pesquisa brasileira está estruturalmente e tecnologicamente entre as mais avançadas da Antártida, logo após a Estação McMurdo, a enorme base científica americana que é praticamente uma cidade pequena e pode abrigar mais de 2.000 pessoas, e a Estação Amundsen Scott. Pólo da Terra, também controlado pelos norte-americanos.
CHAVE PARA O FUTURO
A Antártica é considerada o termorregulador mais importante do planeta, pois controla as circulações atmosférica e oceânica, afetando o clima e as condições de vida na Terra. Possui também as maiores reservas de gelo (90%) e água doce (70%) do mundo, além de inúmeros recursos minerais e energéticos. Seu tamanho também impressiona: com mais de 14 milhões de quilômetros quadrados, é quase o dobro do território nacional do Brasil (8,5 milhões de quilômetros quadrados).
Para o Brasil, considerado o sétimo vizinho mais próximo da Antártida, explorar e entender seus fenômenos naturais é literalmente uma questão de sobrevivência no futuro.
“A Antártida está se aquecendo e isso está causando distúrbios em sua atmosfera. Essas correntes oceânicas, que se estendem da Antártida ao Brasil, garantem, por exemplo, a qualidade da água que permite o desenvolvimento de peixes em nossas costas.
Também afeta os padrões de chuva, pois a massa de ar frio e seco da Antártida sobe em direção à América do Sul, onde encontra a massa de ar quente e úmida da Amazônia. O equilíbrio desse fluxo, onde às vezes um supera o outro, garante a alternância de períodos de seca e chuva, essenciais para o funcionamento da agricultura”, explica Paulo Câmara.
O coordenador científico da estação brasileira na Antártica também cita outras pesquisas importantes que estão sendo realizadas no continente gelado. Uma delas é estudar espécies de fungos endêmicos da região que poderiam ser usados no desenvolvimento de fungicidas para combater a ferrugem asiática, doença causada por um tipo diferente de fungo que está afetando a agricultura em todo o mundo e causando a perda de milhares de milhões de dólares em culturas como a soja.
Com o ritmo acelerado das mudanças climáticas e o esgotamento dos recursos do nosso planeta, a Antártida será o assunto da cidade em apenas algumas décadas. “A Antártida é o último bastião de recursos naturais da Terra; é uma reserva para a humanidade”, enfatiza Câmara.