Epidemias já nos levaram a soluções como coleta de lixo e comércio eletrônico – 04/03/2020

O mundo pode não ser o mesmo após o coronavírus, mas isso não é necessariamente uma coisa ruim. Apesar das perspectivas sombrias devido ao isolamento social, o momento pode produzir algo positivo. Devemos muitos dos avanços sociais e científicos às grandes epidemias do passado. Medicina moderna, coleta de lixo, adoção em massa de tecnologia, comércio eletrônico … tudo isso foi devido a crises como a atual.

Para alguns historiadores, a Peste Negra, que atormentava a Europa na Idade Média no século 14, era importante para os avanços da medicina. Um de seus efeitos, segundo o livro “Peste Negra e Homens de Aprendizagem”, de Anna Campbell, foi um grande volume de escritos sobre a doença, com base na experiência dos médicos da época.

Isso os fez perceber o quão importante era privilegiar a observação e a prática para produzir conhecimento. Até então, eles contavam com o que os primeiros médicos da antiguidade diziam, muitas vezes sem questionar.

Também devemos à Pest a criação de práticas sanitárias e regras operacionais para hospitais. Até a invenção da tipografia por Gutenberg teria ocorrido graças à epidemia. James Belich, da Universidade de Oxford, diz no artigo “Peste Negra e a Expansão da Europa” que a morte de tantas pessoas reduziu a força de trabalho e forçou as pessoas a desenvolver inovações capazes de atender a essa demanda.

Foi por causa da epidemia que os europeus começaram a se aventurar mais no mar, algo que antes havia sido evitado devido ao perigo. Mas, entre permanecer na Europa atormentado por doenças e velejar, a segunda opção não parecia mais tão perigosa. A praga teria sido o ímpeto para a Europa se espalhar pelo mundo.

Na Croácia, Lazaretto (acima) era um edifício usado para manter as pessoas em quarentena - Divulgação / Wikimedia Commons

Na Croácia, Lazaretto (acima) era um edifício usado para colocar pessoas em quarentena.

Imagem: Divulgação / Wikimedia Commons

Tratamento de resíduos

Até meados do século XIX, os ratos eram vistos como meros ladrões de comida. Sua relação com sujeira e doença só viria mais tarde, na chamada pandemia da terceira praga bubônica daquele período.

O pesquisador Matheus Duarte, doutorando e membro da Capes na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS), em Paris, diz que se acreditava anteriormente que a transmissão tinha a ver com o contato direto entre as pessoas. Foi por essa razão que, de fato, foi criada a quarentena, na atual Dubrovnik, Croácia.

Caricatura de Oswaldo Cruz lutando contra a febre amarela e a peste bubônica em 1911 - Museu Funasa

Caricatura de Oswaldo Cruz lutando contra a febre amarela e a peste bubônica em 1911

Imagem: Museu Funasa

“No final do século 19, a praga começou a se associar a ratos”, diz Duarte. Essa descoberta aparentemente simples mudou para sempre a maneira como casas e cidades são construídas. Até então, no Rio de Janeiro, um dos focos da doença, as casas tinham piso simples, sem cimento. O problema era que isso era ideal para os ratos se refugiarem e proliferarem. A solução foi começar a cimentar todas as casas.

Da mesma forma, as cidades não organizaram coleta de lixo. “Estes são exemplos clássicos das mudanças sociais causadas pela doença”, diz Duarte.

Na ciência, a corrida para criar uma vacina é um dos principais motivadores para pesquisadores e médicos unirem forças. O Brasil se destacou por ter sido um dos primeiros a aplicar amplamente a vacina. A partir desse mesmo momento, surgiram as fundações dos institutos Butantan, em São Paulo, e Fiocruz, no Rio de Janeiro, até hoje referências em pesquisa e desenvolvimento de vacinas.

Corrida pela cura

No caso do coronavírus, a busca por inovações e soluções ocorreu em tempo recorde. Em um artigo no site da Conversation, Ignacio López-Goñi, professor de microbiologia da Universidade de Navarra, na Espanha, o compara à AIDS, que teve seus primeiros casos descritos em junho de 1981, mas o vírus foi identificado apenas alguns anos atrás. mais de dois anos. Então, com o coronavírus, esse período foi reduzido para menos de um mês. E por isso, até o Brasil ajudou.

Embora não seja tão letal quanto alguns vírus conhecidos, como a gripe espanhola e o Ebola, o coronavírus preocupa-se principalmente com a velocidade com que se espalha. A necessidade de isolar já levou muitos a procurarem atendimento médico por meio de aplicativos de mensagens ou vídeo, o que pode levar à chamada de telemedicina, ainda pouco adotada pelos médicos.

“Se você pensa na realidade do Brasil, com várias áreas isoladas e dificuldades em contratar médicos, a telemedicina pode ser um grande recurso”, diz Vera Coelho, pesquisadora e coordenadora do Grupo de Cidadania, Saúde e Desenvolvimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento. (Cebrap). “Acho que a importância desse tipo de canal será reforçada e a resistência a essas formas de serviço será quebrada”.

Plataformas como HealthMap.org coletam dados em tempo real para identificar epidemias - Divulgação

Plataformas como HealthMap.org coletam dados em tempo real para identificar epidemias.

Imagem: Divulgação

Fatos de Saúde

Uma tecnologia que está surgindo é o uso de IA e big data (análise de grandes volumes de dados) para a saúde.

John Browstein, Líder de Inovação da Harvard Medical School nos Estados Unidos, está por trás do HealthMap, um sistema que verifica notícias, dados de saúde pública e postagens de mídia social que mencionam sintomas relacionados às epidemias atuais. Segundo Relatório com fioA idéia é ser capaz de identificar possíveis surtos de epidemias e surtos mais rapidamente.

A Organização Mundial da Saúde também possui seu programa de inteligência epidemiológica: o EIOS, que combina dados de plataformas como HealthMap e tecnologias de código aberto (livres para usar e licenciadas) para controlar a propagação de epidemias.

No caso do coronavírus, o sistema da OMS detectou os primeiros sinais do novo surto em 31 de dezembro de 2019, quando foi coletado um artigo sobre vários casos de pneumonia em Wuhan, o epicentro da epidemia na China. Em meados de março, já havia pelo menos 120.000 artigos sobre o surto, agrupados por plataforma por dia.

Um aplicativo chamado Private Kit: Safe, produzido em conjunto pelas universidades MIT e Harvard, além do Facebook e Uber, compartilha dados de localização criptografados e informa os usuários se eles se comunicaram com alguém infectado, sem indicar sua identidade. Na China, um aplicativo do governo executa a mesma função. Se o usuário abordou pessoas infectadas, o aplicativo recomenda que elas fiquem em casa.

“É uma tentativa de criar parâmetros e tecnologias globais para atuar nas dimensões locais”, diz Jean Segata, professor do programa de pós-graduação em antropologia social da Ufrgs e coordenador do Neaat (Centro de Estudos sobre Animais, Meio Ambiente e Tecnologia). Ele, que estuda a prevenção de epidemias como o zika e a dengue, já vê esse movimento. “São empresas que se apressam em fornecer informações para políticas públicas”.

O monitoramento da Internet nem sempre é confiável, pois muitos que pesquisam ou falam sobre sintomas na Internet não estão necessariamente doentes. “Isso pode criar isolamento e preconceito entre áreas e pessoas identificadas como em risco”, diz Segata.

Por outro lado, o tempo pode ser uma oportunidade para acelerar as mudanças. “Quando há uma crise, algumas inovações que estão sendo implementadas realmente entram na agenda”, diz Vera Coelho. Para o SUS, as tecnologias de mapeamento de dados podem facilitar e expandir o alcance da população.

O estouro da bolha imobiliária em 2008 ajudou a impulsionar a adoção do bitcoin - Getty Images

O estouro da bolha imobiliária em 2008 ajudou a impulsionar a adoção do bitcoin

Imagem: Getty Images

Ministério do Interior, comércio eletrônico e bitcoin

Longe dos hospitais, o coronavírus acelerou a adoção maciça do escritório em casa. A crise pode colocar em teste as redes e os sistemas de processamento das empresas.

“Com todas as escolas e empresas que usam comunicação on-line, essa é uma demanda sem precedentes por uma conexão massiva de qualidade”, diz Eduardo Correia, professor de economia do Insper, em São Paulo. Em outras palavras, é um bom momento para testar o quanto a estrutura de rede atual pode suportar, especialmente no tráfego de vídeo ao vivo.

“Vários setores que oferecem serviços on-line estão surgindo. É esperado um aumento na Internet das Coisas e nos serviços remotos, e as pessoas terão esse hábito cada vez mais após a quarentena”, diz Leonardo Paz Neves, analista de inteligência internacional. no NPII-FGV (Centro de Prospecção e Inteligência Internacional da Fundação Getúlio Vargas), no Rio de Janeiro.

Segundo Duncan Clark, autor do livro “Alibaba: a casa que Jack Ma construiu” [Alibaba: A Casa que Jack Ma Construiu], um dos efeitos na China do surto de SARS (síndrome respiratória aguda grave ou influenza aviária, causada por uma variante do coronavírus) entre 2002 e 2003, foi um boom no comércio eletrônico. Na época, a doença também resultou em lojas vazias e quarentenas forçadas para milhões de pessoas.

A adoção de tecnologias também pode ser acelerada em outros setores: em Hong Kong, por exemplo, a agência que gerencia o transporte ferroviário (MTR) contratou robôs para limpar os vagões do metrô e mitigar os riscos de contágio. Outros que são usados ​​há mais tempo, como torneiras e descarga automática em banheiros públicos para evitar o contato com as mãos, ainda economizam água.

Isso também se aplica a outras crises que já enfrentamos, como o estouro da bolha imobiliária em 2008. Foi nessa época que o Bitcoin foi criado. “A lógica era criar uma moeda sem governo que pudesse servir para escapar da interferência do governo”, diz Paz Neves. “Toda crise leva as pessoas a pensar em novas soluções”.

Imagens da NASA mostram poluição em queda na China - Reprodução / Nasa Earth Observatory

Imagens da NASA mostram queda da poluição na China

Imagem: Reprodução / Nasa Earth Observatory

Como será o amanhã?

Ao mesmo tempo, a epidemia nos chama a olhar mais criticamente como vivemos.

“A sociedade não é apenas afetada pelas epidemias, mas as epidemias são criadas pela sociedade e por mudanças históricas”, diz Matheus Duarte. Para ele, um dos primeiros impactos do coronavírus é justamente verificar algumas suposições da globalização, ao mesmo tempo em que é o resultado disso.

O mundo nunca pareceu tão pequeno. Tudo o que acontece em um país chega ao outro lado do mundo em pouco tempo. E as perspectivas para a economia global não são muito brilhantes.

“É a sensação de que não há para onde ir, não há mais escapatória”, diz Matheus. Para ele, a divisão dos estados-nações não faz mais sentido: o conjunto de atitudes de todos os países realmente determinará o curso dos eventos.

Aliás, um dos efeitos mais comentados tem sido a queda nos níveis de poluição. Na China, as emissões de CO2 teriam caído 25% entre janeiro e fevereiro em comparação com o mesmo período de 2019 devido à quarentena. Na Itália, a Comissão Europeia e a Agência Espacial Europeia (ESA) também relatam uma diminuição nos níveis de poluição. A mensagem é clara: nossa cultura de consumo e produção tem um grande impacto em nosso planeta.

Por outro lado, para Leonardo Paz Neves, da FGV, é improvável que essa situação mude em pouco tempo. “A globalização já está completa. No caso do vírus, é um problema compartilhado por todos os países”, diz ele. Outros fatores, como terremoto ou desastre em um país como a China, podem afetar novamente a cadeia global.

Ainda assim, o momento agora pode servir para políticas internacionais mais firmes. Por exemplo, a dependência de matérias-primas ou a produção de certos produtos não podem mais vir de determinados países. “Talvez tenha sido um bom ensaio geral para ver como conseguimos encontrar inovações que ajudam a economizar tempo e aprender com a nossa falta de coordenação”, diz Paz Neves.

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