Apagamento de paredes: murais de azulejos no modernismo brasileiro
“Senti que era o Nino Rota e o Oscar Niemeyer era o Fellini, era como se ele estivesse criando uma peça musical importante naquela obra de arte.“O consagrado artista visual Athos Bulcão usa essa comparação entre o compositor italiano e o cineasta para se referir à relação entre sua obra com a cerâmica e a arquitetura. Essa fusão entre arte e arquitetura marcou um período importante na história do Brasil, iluminando questões como identidade nacional, massificação da arte e técnicas arquitetônicas voltadas para o clima tropical.
+ 13
A história dos revestimentos cerâmicos no Brasil remonta a muitos anos antes de eles começarem a ser incorporados aos monólitos de concreto da arquitetura moderna. Tudo começou quando colonizadores portugueses chegaram ao país e os introduziram junto com outras formas de arte, que iniciaram um processo de aculturação com cópias verdadeiras do império europeu. Dos padrões policromáticos aos tons monocromáticos de azul, influência da porcelana chinesa, historicamente associada à grande estabilidade desse pigmento e suas propriedades para suportar as mais altas temperaturas de queima, os azulejos deixaram sua marca na arquitetura brasileira desde os tempos coloniais.
Porém, após um longo período de abandono, a arquitetura brasileira testemunhou o renascimento do revestimento cerâmico em 1936, quando o arquiteto suíço-francês Le Corbusier visitou o país. Segundo alguns autores, o arquiteto ficou fascinado com a beleza dos azulejos da igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro, no Rio de Janeiro, e sugeriu utilizá-los no projeto do Ministério da Educação e Saúde, também conhecido como Gustavo . Palácio Capanema. De fato, o historiador Yves Bruand afirma que essa proposta foi revolucionária e de grande impacto na evolução da arquitetura do país, justamente porque Le Corbusier incentivou jovens arquitetos a utilizarem elementos indígenas e tradicionais integrados à arquitetura, destacando que o estilo do O século XX foi internacional, mas isso não implicou na rejeição de elementos regionais que garantissem a originalidade.
Seu comentário caiu como uma luva enquanto o país passava por um processo de descoberta de sua identidade arquitetônica em meio a um contexto nacionalista, tanto que após a construção do Ministério, os azulejos passaram a ser utilizados em outros prédios públicos. Isso contribuiu para a consolidação e fortalecimento dos ideais do governo, que incentivou artistas como Athos Bulcão, Cândido Portinari, Burle Marx, Djanira e Paulo Rossi-Ozir a criar uma nova linguagem visual a partir do azulejo.
Segundo Roberto Segre (2006), o azulejo humanizou o vocabulário abstrato da arquitetura, resgatando uma tradição perdida, mas também proporcionando uma luz tropical aos edifícios com seu acabamento em branco brilhante, conectando a arte com o público e permitindo uma ruptura com o automatismo do cotidiano. vida e estabelecer um diálogo natural com a arquitetura.
Se os azulejos contribuíram com exuberância para os planos e volumes dos pesados edifícios coloniais, na arquitetura moderna eles contribuíram com graça e fluidez para os desenhos geométricos, atuando como mediadores entre a forma estática e o ambiente. – Roberto Segre
Altas temperaturas e níveis de umidade impactam sobremaneira a escolha dos materiais, logo o fato de se adaptarem perfeitamente ao clima brasileiro, proporcionando boa proteção para paredes externas que ficam expostas a fortes chuvas e intensa radiação solar, também tem ajudado a solidificar sua popularidade. de uma vez por todas.
Embora considerada um elemento decorativo, o potencial dos ladrilhos aumentou quando passaram a ser utilizados em conjunto com o projeto arquitetónico numa relação estreita, muitas vezes desde os primeiros conceitos, resultando na unidade entre construção e acabamento. No entanto, apesar dessa ligação inseparável, como a arte se tornou uma adição quase obrigatória aos projetos da época, que incluíam escultura, pintura, murais de azulejos, etc., Bruand (1999) enfatiza que a arquitetura teve um papel preponderante. Era sempre o arquiteto quem decidia o papel que caberia ao pintor ou escultor, colocando a obra de arte no lugar certo. Em outras palavras, a obra de arte nunca afetaria a aparência estrutural do edifício, e seu objetivo era realçar as paredes para que fossem mais do que apenas fechamentos.
Sobre o icônico Palácio Capanema, apontado por muitos como o primeiro exemplo da arquitetura moderna no Brasil e o primeiro a revisitar o uso de azulejos, o arquiteto Lúcio Costa, que integrou a equipe de design, afirma que os azulejos apareceram no térreo e no O padrão liso adotado na composição dos grandes murais claramente tinha a função de suavizar a densidade das paredes para remover qualquer impressão de suporte estrutural, uma vez que o bloco superior não se apoia nas paredes, mas nas colunas.
Seis dos sete murais do projeto são de Candido Portinari e o último do artista plástico Paulo Rossi, e ambos contribuíram muito para o desejo da equipe de integrar os azulejos com as demais obras do prédio e “dissolver” as paredes do rés-do-chão para que não sejam percebidas como elementos estruturais, mas exclusivamente como uma envolvente edificada.
Por falar na obra de Portinari, vale citar os famosos murais que projetou para a Igreja de São Francisco de Assis de Oscar Niemeyer, também conhecida como Capela da Pampulha. Ao contrário do Ministério da Educação e Saúde, desta vez a artista se afasta do abstracionismo e caminha para a arte figurativa. Os murais da Pampulha parecem uma continuação dos desenhos do Ministério, com o mesmo padrão de azulejos azuis e brancos que remetem ao estilo colonial português, que dada a função religiosa do prédio, parecia ainda mais natural. O uso de azulejos neste projeto moderno e arrojado cria um equilíbrio interessante entre o volume único e a cena pictórica, trabalhando juntos para construir a ambiência do espaço.
Outro grande exemplo de azulejos na arquitetura moderna é a Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Brasília. Este emblemático projeto de Niemeyer consiste em um edifício de forma triangular com cobertura de concreto sustentada por três colunas. As paredes externas da igreja são revestidas com azulejos de Athos Bulcão, formando um padrão uniforme em azul e branco. Tal como no Palácio de Capanema, estes azulejos são utilizados para acentuar a função das paredes como envolvente não estrutural do edifício.
E por último, não se pode falar de murais de azulejos modernistas sem falar da obra de Roberto Burle-Marx, que não só trabalhou como paisagista, mas também criou cerca de 100 diferentes murais, provavelmente o exemplo mais notável é o seu design para as regatas do Clube de Basco. da Gama, uma instalação do clube desportivo da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, em que revestiu a parede posterior com motivos marinhos, transmitindo a sensação de movimento e leveza da água. Também desenhou os murais recém-reformados dos jardins do Instituto Moreira Salles e da Fundação Oswaldo Cruz.
Nesta viagem pela história do azulejo na arquitetura moderna, Maria Cecília Lourenço (1995) explica que não há dúvida de que esses murais contribuíram para a arquitetura moderna, seja apagando paredes, como mencionou Le Corbusier, seja chamando a atenção dos transeuntes. . porque ficam um tanto entorpecidos pelo cenário da vida cotidiana. A combinação equilibrada de murais e arquitetura permite que a sinfonia moderna tome conta das ruas e traga seus sonhos para o ambiente urbano.
Lista de referência
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no brasil [Contemporary Architecture in Brazil]. São Paulo: Ed. Perspective, 1999.
JUNIOR, Rafael Alves Pinto. Azulejos Portinari como elementos visuais da arquitetura modernista no Brasil [Portinari’s tiles as visual elements of modernist architecture in Brazil], Architexts, 2007.
LOURENÇO, Maria Cecília França. Obra pública: o ápice da arte moderna brasileira [Public Artwork: the pinnacle of Brazilian modern art], 2001.
SEGRE, Roberto. arquitetura brasileira contemporânea [Contemporary Brazilian architecture]. Rio de Janeiro: Vianna & Mosley, 2004.
SILVEIRA, Marcele Cristiane da. O azulejo na modernidade arquitetônica 1930-1960 [Tiles in architectural modernity 1930 – 1960]. Dissertação de mestrado, FAU-USP, 2008.
WANDERLEY, Ingrid Moura. Azulejos na arquitetura brasileira: painéis de Athos Bulcão [Tiles in Brazilian architecture: murals by Athos Bulcão], CESE-USP, 2006.